Uma noite mal dormida
Zé cai por terra e o fio com o trovão solta-se. No escuro da noite, o rapaz grita, enquanto apalpa o chão, à sua volta, à procura do fio. Ao seu lado, vê passar Alice que não para. Zé grita, mas Alice parece não ouvi-lo. De joelhos no chão, Zé tenta pôr o fio ao pescoço ao mesmo tempo que procura levantar-se, mas alguém lhe dá um valente encontrão, não lhe dirige a palavra e continua a correr. É Pedro. O fio volta a cair.
Furioso, Zé grita novamente:
– O que é que se passa convosco? Não olham por onde andam?
Torna a baixar-se, à procura do fio. António para ao seu lado e pergunta-lhe o que faz ali.
– Procuro o meu fio. Ajudas-me?
Zé levanta a cabeça, tentando ver o amigo, mas António já não está ali, prosseguiu caminho. É Mel quem olha para ele, sorri-lhe e dança, dança à sua volta, ri-se muito alegre e rodopia sem parar e trauteia uma música estranha, repetindo vezes seguidas as palavras «Não vais conseguir, não vais descobrir». O rapaz está mesmo zangado, mas, antes de conseguir dizer uma palavra de repreensão, já Mel se afastou. Zé volta a baixar-se, à procura do fio.
De repente, a irmã, o primo e os amigos regressam a correr e a gritar. Alice e Mel dão gritos horríveis que entram pelos ouvidos de Zé, obrigado, assim, a tapá-los. Pedro chora descontroladamente e António empurra os outros à sua frente. Alice abraça-se a Zé e não para de gritar, Mel segura Alice e empurra-a, ao mesmo tempo que esta aperta o irmão nos braços. Pedro puxa o primo e limpa a cara redonda à barriga de Zé. António também puxa o amigo que acaba por cair no chão, levando todos os outros a cair também. Os gritos agudizam-se ainda mais e Zé tenta sobrepor a sua voz às dos outros.
– Parem! Parem! O que é que se passa convosco? Parem!
Imediatamente, todos se calam e olham na mesma direção. Zé segue os olhares e vê um vulto com um longo e largo vestido vermelho à sua frente. Não consegue perceber quem é, mas lembra-se que não é a primeira vez que o vê. O rosto do vulto ilumina-se quando diz: «Não conseguirão repor a ordem, o mundo inferior vencerá!»
Zé grita e acorda sobressaltado. De tronco nu, sentado na cama, o rapaz limpa o rosto suado e engole em seco. «Foi só um sonho, um estúpido sonho…», pensa enquanto acende o candeeiro, espreita o despertador que marca as 04h15 da manhã e se levanta da cama. Perdeu o sono e senta-se à secretária. No computador ainda brilha a mesma frase que o grupo viu na tarde anterior.
Os dedos de Zé correm o teclado com fúria.
– Quem terá entrado na plataforma que eu criei? Porque escreveu esta frase? Será alguém que sabe quem nós somos? Como é que descobriu? Para além dos guardiões, quem mais pode saber? Tenho de descobrir quem escreveu isto!
No ecrã escuro correm letras e mais letras brancas, pequenas. Zé procura perceber se alguém acedeu ao programa que criou, mas não descobre nada. Zangado, bate com a mão com toda a força na secretária. O barulho que faz acorda a irmã, do outro lado do corredor. Alice espreita para dentro do quarto do irmão.
– Zé, sabes que horas são? Seis e meia… O que fazes acordado a esta hora?
– Seis e meia?!? Já passou imenso tempo… Estou cansado, vou deitar-me um bocado… – responde, mal-humorado.
Mas Alice está desperta, já entrou no quarto e sentou-se ao lado do irmão, observando com curiosidade o monitor cheio de letras brancas.
– Descobriste alguma coisa? Alguém entrou no programa que criaste?
– Não… nada, não percebo… E tive um sonho muito esquisito. A Mel não parava de repetir que eu não ia descobrir… Eu tentava apanhar o meu fio do chão e vocês passavam por mim a correr e não me ligavam nenhuma, e depois voltavam aos berros, estavam apavorados e a ser seguidos por alguém…
– Quem? – interrompe Alice curiosa, já sentada em cima da cama do irmão.
– Não sei! Acho que era aquela pessoa que vimos em Creta, aquela que os guardiões perseguiram, mas não deu para lhe ver a cara…
Zé deita-se, empurra a irmã para fora da cama e põe a cabeça debaixo da almofada, precisa de adormecer rapidamente, doem-lhe os olhos do tempo que passou ao computador e está mesmo aborrecido.
– Oh… – responde Alice desanimada. – Se tivesses visto, talvez descobrisses quem era…
O rapaz não lhe responde, já adormeceu e Alice volta para o seu quarto. Passa pela estante, agarra no livro de mitologia grega e atira-se para cima da cama. É um livro grande e dourado, com lindas ilustrações pintadas de cores brilhantes. Folheia-o. Não lê uma única palavra, observa só as imagens. Procura alguém que esteja vestido de vermelho, mas nada. Cansada, acaba por adormecer.
Uma campainha toca sem parar. É o despertador que marca as dez da manhã. Zé desliga-o e espreguiça-se. Recorda a noite anterior e dá um soco na almofada, frustrado por não ter descoberto nada. Alice irrompe pelo quarto, dá os bons dias ao irmão e pergunta-lhe como dormiu mas, ao ver o seu rosto fechado, percebe que o resto da noite não correu bem. O telefone toca, é António.
– Zé? Tive um sonho estranhíssimo… Eu estava à procura do meu fio com a lira e a Alice passou por mim a correr, depois foi a vez do Pedro, a seguir foste tu e…
– A seguir foi a Mel, a dançar e a cantar?… Esse foi o meu sonho! – grita o Zé, saltando da cama.
– Sim, a Mel só dizia que eu não ia descobrir. Descobrir o quê?
Alice ouve as respostas do irmão e percebe que ele e o amigo tiveram o mesmo sonho. No seu quarto, toca o telefone. A rapariga corre em direção ao telefone e atende. É o Pedro.
– O que é que se passa? O Zé não me atende!
– Bom dia priminho, dormiste bem?
– Não! E tive um sonho horrível! Preciso de falar com o Zé! Vocês estavam todos a correr e eu no chão à procura do meu anel com o tridente e…
– Já sei, já sei… Acho melhor vires até cá, assim que puderes. Até já, a Mel está a ligar-me. – Alice desliga a chamada ao primo e atende a da amiga.
– Também sonhaste que perdeste o teu cinto?
– O quê?! Como é que sabes? – pergunta Mel, espantada, do outro lado da linha.
– Parece que todos sonharam menos eu…– responde Alice, frustrada. – Vem cá ter assim que puderes, pode ser?
Alice desliga o telefone e vai ter com o irmão à cozinha.
– Despacha-te a comer e vai tomar banho, daqui a nada a Mel e o Pedro estão aí. Pelos vistos, todos tiveram o mesmo sonho, menos eu… – diz Alice mal disposta.
– Vá lá, maninha, não fiques chateada. Se calhar sonhaste e não te lembras… O António também deve estar quase a chegar. Vai tomar banho e vestir-te!
Pouco tempo depois, o grupo estava todo reunido no quarto de Zé. Alice permanece calada, enquanto os outros quatro partilhavam o sonho que tiveram. Pedro é o que está mais entusiasmado.
– Fixe! Sonhámos todos a mesma coisa!
– E no meu sonho, o Pedro dançava todo satisfeito à minha volta… – conta Mel, fazendo os outros rirem-se ao imaginar o rapaz.
– Porque é que tu não sonhaste, Alice? – pergunta Pedro.
– Sei lá…
Alice encolhe os ombros e sente-se mesmo mal, como se não fizesse parte do grupo.
– O Zé acha que eu sonhei só que não me lembro…– continua.
– Sim, claro que sim! – responde Mel, abraçando a amiga. – As pessoas com uma inteligência superior não têm tempo para sonhar!
– Ei! Estás a dizer que somos todos pessoas com inteligência inferior?!? – pergunta Pedro de olhos muito abertos, fingindo estar ofendido com a amiga.
Todos se riem e Alice acaba por esboçar um sorriso ao ver Alice atrapalhada, sem saber o que responder aos outros.
– Isto é tudo muito engraçado, mas era bom percebermos porque é que vocês sonharam todos a mesma coisa. O que é que esse sonho significa? Porque é que vocês perdem o símbolo, o procuram e não encontram? Do que é que nós fugimos? Quem é esse vulto de vermelho? – pergunta Alice.
Todos ficam em silêncio.
– Acho que perdemos o símbolo porque ainda não nos habituámos a ele… – começa o António, para logo ser interrompido por Mel.
– Sim! E fugimos daquela pessoa de vermelho. Alguém conseguiu perceber se era um homem ou uma mulher? Viram-lhe a cara?
– Não, não percebi quem era, nem o que era… – responde Zé.
– Eu estive à procura no meu livro da mitologia e não encontrei ninguém vestido de vermelho – conta Alice.
– O vermelho significa poder e riqueza, mas também é a cor dos sinais de trânsito proibido, dos semáforos para parar… Se calhar é alguém muito poderoso que não quer que nós cumpramos a nossa função – interpreta Mel.
– Sim, é alguém que nos transmite exatamente a mesma mensagem que apareceu no meu computador. Portanto, é alguém que nos quer impedir de fazer o que os guardiões nos pediram – concorda Zé que, nesse mesmo instante, liga o computador e acede à página que criou.
– E porque é que tu só cantavas «não vais conseguir, não vais descobrir»?
– Como é que eu hei de saber?!? A verdade é que nenhum de nós descobriu ainda quem é que colocou essas palavras na nossa plataforma… – responde Mel.
Todos olham para o monitor, a mensagem continua lá, a vermelho. Mas, segundos depois, muda para: «Ver-nos-emos em breve!»